Ufa! Chegamos a 100 postagens, nem sequer imaginei que tivesse tanto assunto, embora tenha muita coisa que não seja minha. Pra comemorar, nada melhor do que uma crônica ganhadora do Concurso Literário Ziraldo da décima feira nacional do livro de Ribeirão Preto na categoria Adulto e Modalidade Crônica! Crônica de autoria de Jorge de Barros, guardem esse nome, seus netos ainda estudarão sobre ele! Essa crônica e outras obras poderão ser conferidas no blog do autor "O Ofício do Ócio". Segue a crônica:
Eu, o Opressor
para Rute
Eu sou um opressor. É necessário dizer isso. Sou brasileiro e nunca passei fome, nunca precisei do sistema público de saúde, sou branco, heterossexual, homem, adulto, moro na cidade de São Paulo, meu cachorro come ração da boa pra ficar com o pêlo bem bonito. Eu só posso ser opressor! Entretanto esse pensamento me oprime, porque sou artista, meio de esquerda, eleitor de partidos de bandeira vermelha, professor de escola privada (mas sindicalizado!) e leitor de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Florestan Fernandes... leituras que só me fizeram ter consciência de que sou um opressor e me impediram assim de ter a doce inocência dos que oprimem sem perceber... Inocência que vejo em muitos de meus alunos, adolescentes classe-média cujas únicas preocupações devem ser as espinhas, os beijos, o Playstation e tirar nota na prova... tão inocentes que nem percebem que, quando fazem guerrinha de giz, a pobre “tia da limpeza” vai ter muito mais trabalho, vai chegar mais tarde em casa e ouvir as queixas do marido e do filho, que também pegaram conduções lotadas, mas querem o arroz com feijão pronto e fumegante na hora certa, para matar a antiga fome...
Mas eu sou amigo das tias da limpeza! Eu as cumprimento, chamo pelo nome, mostro que as vejo! Embora algumas, no início, reagem como se tivessem vergonha de que eu as tenha percebido. Seu cumprimento, discreto e encabulado, soa quase como um pedido de desculpas. Elas gostam de mim, mas isso não muda o fato de que eu sou, sim, um opressor. Até mesmo o fato de que o dono da escola também me oprime, não me redime dessa verdade. Até porque eu e o dono da escola temos carro, temos cachorro que come ração, somos brancos, homens, heterossexuais e moramos em São Paulo. Elas são mulheres, negras e caboclas, seus cachorros comem restos de comida, e elas, apesar de morarem em São Paulo, têm seus lares de coração bem longe, num pé de serra, num sertão que seria a coisa mais verde do mundo, se a esperança tivesse, de fato, essa cor.
Meu pai também veio desse sertão, ele era um oprimido. Talvez venha mais daí a minha identificação com as tias da limpeza do que das minhas leituras sociológicas... Meu pai gerou filhos opressores e isso é o que se chama “ascensão social” no Brasil, pois não há outra forma de deixar de ser oprimido. Meu pai carregava café no antigo IBC, Instituto Brasileiro do Café. Quase morreu duas vezes com os montes de sacas que escorregavam de pilhas mal feitas pela pressa de estocar a riqueza do Brasil. Imagina só: morrer esmagado por uma tonelada de grãos de café alheio... Hoje eu ensino em um colégio de São Paulo, e existe até alguma possibilidade de que eu dê aulas para os netos dos magnatas do café que oprimiram meu pai, auxiliando esses pequenos a entrar na universidade pública, essa bela fábrica de opressores! Essa ideia me aproxima um pouco de meu pai: nós servimos à mesma elite paulista. Ele, carregando a riqueza nas costas; eu, instruindo os filhos da riqueza para que o ciclo recomece. Mas isso não faz de mim menos opressor.
Talvez eu seja pior que isso, porque tenho a consciência que meu pai não tinha e ainda assim estou a serviço da perpetuação das relações de opressão... Eis o ponto crucial, pois é justamente essa minha contribuição para os opressores o preço que eu tenho que pagar para não ser um oprimido como meu velho pai… e o fato de que eu o amo, respeito e admiro não faz de mim menos opressor.
Mas eu sou amigo das tias da limpeza! Eu as cumprimento, chamo pelo nome, mostro que as vejo! Embora algumas, no início, reagem como se tivessem vergonha de que eu as tenha percebido. Seu cumprimento, discreto e encabulado, soa quase como um pedido de desculpas. Elas gostam de mim, mas isso não muda o fato de que eu sou, sim, um opressor. Até mesmo o fato de que o dono da escola também me oprime, não me redime dessa verdade. Até porque eu e o dono da escola temos carro, temos cachorro que come ração, somos brancos, homens, heterossexuais e moramos em São Paulo. Elas são mulheres, negras e caboclas, seus cachorros comem restos de comida, e elas, apesar de morarem em São Paulo, têm seus lares de coração bem longe, num pé de serra, num sertão que seria a coisa mais verde do mundo, se a esperança tivesse, de fato, essa cor.
Meu pai também veio desse sertão, ele era um oprimido. Talvez venha mais daí a minha identificação com as tias da limpeza do que das minhas leituras sociológicas... Meu pai gerou filhos opressores e isso é o que se chama “ascensão social” no Brasil, pois não há outra forma de deixar de ser oprimido. Meu pai carregava café no antigo IBC, Instituto Brasileiro do Café. Quase morreu duas vezes com os montes de sacas que escorregavam de pilhas mal feitas pela pressa de estocar a riqueza do Brasil. Imagina só: morrer esmagado por uma tonelada de grãos de café alheio... Hoje eu ensino em um colégio de São Paulo, e existe até alguma possibilidade de que eu dê aulas para os netos dos magnatas do café que oprimiram meu pai, auxiliando esses pequenos a entrar na universidade pública, essa bela fábrica de opressores! Essa ideia me aproxima um pouco de meu pai: nós servimos à mesma elite paulista. Ele, carregando a riqueza nas costas; eu, instruindo os filhos da riqueza para que o ciclo recomece. Mas isso não faz de mim menos opressor.
Talvez eu seja pior que isso, porque tenho a consciência que meu pai não tinha e ainda assim estou a serviço da perpetuação das relações de opressão... Eis o ponto crucial, pois é justamente essa minha contribuição para os opressores o preço que eu tenho que pagar para não ser um oprimido como meu velho pai… e o fato de que eu o amo, respeito e admiro não faz de mim menos opressor.
Jorge de Barros
Fonte de Imagem: ooficiodoocio.blogspot.com
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